Cosme e Damião na encruzilhada da fé

Cultura 26/09/2024 12:55

As festas das crianças. Nas comemorações populares brasileiras, há um ciclo de quase um mês de festejos inter-religiosos e culturais em que as crianças são protagonistas: os saquinhos de doce do subúrbio carioca se espalharam por todos os estados, as quitandas de erês nos terreiros de candomblé, as giras de Ibejada nas casas umbandistas.

O ciclo de festas das crianças, celebra com brincadeiras, guloseimas coloridas e doces, a alegria, a ternura, que as crianças atraem, e culmina com a comemoração a São Cosme e Damião, e ou Cosme, Damião e Doum, Crispim e Crispiniano.

27 de setembro dia de Cosme e Damião não é feriado, não está no calendário nacional ou programação oficial do Estado. Neste dia, na cultura popular, diferentes grupos religiosos: católicos, umbandistas, candomblecistas, daimistas, etc. cultuam os santos gêmeos, realizando festas para as crianças ao homenageá-los.

Na sua flexibilidade, a tradição, ultrapassa o dia 27 de setembro. Se o dia coincidir com dia de semana, os devotos vão homenagear os santos gêmeos, aos sábados ou domingos. Nesta festança as celebrações se estendem até o Dia das Crianças, oficialmente em 12 de outubro, que também feriado por coincidir com o Dia de Nossa Senhora Aparecida, padroeira do Brasil.

Outra data referência para esses festejos é o dia 25 de outubro que celebra os santos Crispim e Crispiniano. Para os católicos o dia de São Cosme e Damião é 26 de setembro, por ser imprevisível a data da morte dos gêmeos alterou-se a data comemorativa. Anteriormente a data fixada em 27 de setembro, e correspondia ao dia da inauguração da basílica de São Cosme e Damião em Roma, no ano 527.

Em 1969 o Papa Paulo VI, reformou o calendário católico e como dia 27 de setembro é o dia em que São Vicente de Paula morreu, resolveu antecipar as comemorações de Cosme Damião para 26 de setembro. A mudança oficial não alterou a tradição pois o povo continua considerando dia 27 de setembro dia de São Cosme e Damião.   

 

Resumo da vida de Cosme e Damião que são celebrados e cultuados nas igrejas e terreiros brasileiros.

Segundo Simas (2024) a tradição católica conta que os gêmeos Cosme e Damião viveram na Ásia Menor, na Síria, durante o século III e eram médicos, caridosos, que cuidavam das pessoas, sobretudo das crianças sem cobrar pelos serviços. Diz a tradição popular, que eles levavam doces para amenizar a tristeza da doença e as violências sofridas pelas crianças. Por fazerem da prática médica uma profissão da fé cristã eles convertiam aqueles que eram curados; eles foram martirizados e degolados a mando do Imperador Diocleciano na perseguição aos cristãos no Império Romano.

 Pouquíssimo tempo tem relatos da materialização e dos milagres de Cosme e Damião sendo marcados pela cura dos enfermos e por cuidar de crianças vitimadas pela violência. Os devotos levaram os corpos dos gêmeos para Roma segundo a história oficial, assim o culto dos santos desenvolveu-se, na Europa, vinculado às práticas médicas.

Na tradição popular da Síria, diz-se que após a morte dos gêmeos, eles teriam virado duas estrelas enfileiradas que brilham juntas e vivem no céu ao lado de uma terceira estrela menor, que representaria uma criança curada por eles.

Será que essa estrela menor é aquela que nos terreiros virou Doum, ou será aquele aquela que se canta no ponto umbandista: “La no céu tem três estrelas, todas as três em carreirinha, uma é Cosme e Damião outra é Mariazinha”. Será uma grande coincidência? Quem é a terceira estrela no céu? Algumas referências são imprecisas. Mas podemos perceber que nas encruzilhadas entre mitos, histórias, os ritos ganham novos sentidos e são constantemente resignificados. 

As trocas simbólicas se fazem por intensos encontros culturais repletos de tensões, amálgamas, resistências, imbricamentos, contradições, impurezas, alteridade, dribles, gingas dos modos de praticar o mundo enquanto uma experiência encruzilhada na poética, estética da beleza cultural afrobrasileira. Isso é cultura, a cultura de encontros.

No contexto da diáspora africana nas Américas, esse culto foi associado ao culto africano da gemelaridade, destacando-se, em terras brasileiras, a hibridização entre Cosme e Damião e os orixás Ibejis muito ligados ao culto dos gêmeos e protetores dos gêmeos e das crianças em geral na tradição iorubá.

Há mais de 67 anos Mãe de santo Maria José da Silva Matos realiza festa a São Cosme e Damião no Centro Espírita Pai Jeremias – Seara de Vó Baiana e destaca: Cosme e Damião são consagrados em todos os terreiros. É uma homenagem para todas as crianças, onde têm muitas balas, guloseimas e brincadeiras de crianças. Tem muita alegria e brincadeiras”.

Tradição iorubá.

 Muitas das pessoas trazidas para o Brasil para ser escravizadas durante o colonialismo, vinham da África Ocidental, região da Nigéria, sendo os Iorubás um dos principais grupos étnicos. Foram trazidas influências linguísticas, culturais, artísticas e gastronômicas e entre os elementos da tradição iorubá que permaneceram por aqui temos o culto aos orixás (Xangô e Iemanjá etc), os instrumentos de percussão (o atabaque) e as comidas de santos (acarajé, vatapá, abará, etc).

Nesse processo, tanto da funcionalidade quanto das representações icnográficas de Cosme e Damião, foram redefinidas. Os santos passaram a estar ligados à infância, sendo considerados protetores não só dos gêmeos, mas das de toda a criançada. Nas representações icnográficas os dois adquiriram formas infantis, e um novo personagem foi acrescido à imagem: Doum, é aquele garotinho pequenininho que está posicionado no meio das estátuas de Cosme e Damiao. Supõem que essa versão popularizada vinculada às histórias de Cosme e Damião cruzados sincréticamente com o culto do Ibejis (Nigéria).

Na cultura tradicional iorubá, sempre depois que a mãe dá luz a gêmeos ela precisa ter outro filho, pois esse impede que a genitora enlouqueça e esse filho sempre é chamado Idowú. Termo iorubá Idowú, nome que se dá ao irmão nascido após os gêmeos Ibejis. Idowú virou Doum nas encruzilhadas da Amefrica.

Pai Bosco de Sangô nos relata como são os festejos e a cerimônia em seu Ilè Okowoò Asè Iyá Lomin' Osà:  No meu ilè Aṣè não fazemos festa de Ibejis, e sim oferendas a esses oriṣàs. As oferendas são feitas no mês de outubro,  próximo ao dia das crianças. Entre as oferendas está o caruru, acarajé, acaça doce e aruá, entre outras tantas iguarias que oferendamos.

Em nosso ilè procuramos não fazer sincretismo religioso, por isso temos a certeza que Oriṣàs Ibejis, nada tem a ver com os santos católicos São Cosme e São Damião. Temos a certeza que a prática do sincretismo serviu em um dado momento da história e cultura africana e afro-brasileira, hoje na minha opinião não tem sentido lógico tais práticas.  Não crítico nenhum babalorixa ou iyalorixa, mameto ou tateto que ainda tem essa prática.  Porém, na minha concepção Ibejis são Ibejis oriundo de África e Cosme e Damião é de origem europeia.  E na minha humilde opinião é necessário fazer essa distinção.   E trazer à baila debates sobre culturas distintas e diversas presentes nesse imensurável Brasil, sem, contudo, uma tentar silenciar a outra.

 Os festejos de Cosme e Damião.

 Os festejos de Cosme e Damião, via de regra, combinam duas grandes modalidades de celebração difundidas no Brasil a partir das associações entre as práticas do candomblé, do catolicismo e da umbanda: o costume baiano de ofertar o caruru e a tradição carioca de distribuir saquinhos de doces.

As comidas, sejam elas doces ou salgadas, são elementos fundamentais das sociabilidades festivas. Por isso, nas celebrações de Cosme e Damião, o caruru e os doces representam mais do que especificidades gastronômicas atrativas ao paladar afetivo: são elementos que nos ensinam sobre os pluriversos e múltiplos contextos culturais em que os santos são festejados no Brasil.

Dar caruru para os santos é mais que preparar um prato à base de quiabo e dendê. Essa atitude representa organizar festa no espaço doméstico ou religioso, ao tempo em que propaga, difunde saberes, fazeres ancestrais carregados de poética, estética e política antirracista.

 Nessa tradição soam muitas cantigas de samba de roda em louvação aos santos. As crianças são as protagonistas do caruru e sete delas são convidadas a se sentar em círculo no chão e comer com as mãos a comida sagrada. Os adultos também participam.

No caso das Ibejadas, cultuadas pelos umbandistas, são as Mariazinhas, os Pedrinhos e as Rosinhas, entidades brasileiras, que preferem os doces ao caruru. Estabeleceu-se, assim, uma relação entre o paladar das guloseimas e a doçura sagrada das Ibejadas: a entrega de doces fortalece o valor emocional associado à pureza infantil.

A tradição das guloseimas se popularizou em Cuiabá e muitas cidades brasileiras, numa configuração contemporânea: a distribuição em saquinhos, atualizou-se, utilizando, na maioria das vezes, doces industrializados numa reconfiguração atendendo às demandas dos tempos atuais.

Pai Tharles Figueiredo, coroado pela Casa de Caridade Nossa Senhora Aparecida, de Rondonópolis-MT, menciona que: “O festejo de Cosme e Damião no Brasil possui inúmeros significados e definições. É um pilar fundamental da Umbanda, ao lado dos Pretos Velhos e Caboclos. Esta linha, com toda certeza, é uma das mais bonitas. São responsáveis por levar alegria, cura, amor e união para a comunidade. Utilizando de grandes sorrisos, brincadeiras e muita esperteza para interagir com os médiuns, crianças e consulentes. No entanto, por trás de sua aparência infantil, possuem conhecimentos sagrados e uma magia capaz de curar e transformar vidas. Salve os Ibejis! Salve Cosme, Damião e Doum!”

 Oferecer doces nos festejos de Cosme e Damião promove brincadeiras por ruas, casas e terreiros, que são tomados por crianças em busca das guloseimas. Os devotos costumam distribuir saquinhos de doces estampados com a imagem dos santos no portão de casa, em praças, em frente ou dentro de igrejas, centros e terreiros que podem oferecer tanto os doces quanto o caruru às crianças e vizinhança.

Além de saquinhos preenchidos com guloseimas industrializadas (pirulitos, maria-mole, suspiros, paçoquinhas, pipoca doce, etc), e doces caseiros (pé de moleque, doce de abóbora e doce de batata-doce) a garotada ainda pode receber brinquedos. Os santos também são celebrados com o preparo de uma mesa enfeitada com bolos como numa festas infantis de aniversários. Nos festejos se reza, se brinca, canta, dança e gira com e para as Ibejadas, os Eres, São Cosme, Damião, Doum, Crispim e Crispiniano.    

 Por Gilda Portella, sacerdotisa de Umbanda do Centro Espírita Nossa Senhora do Carmo, multiartista, mestranda PPGECCO/UFMT, membra do Coletivo Herdeiras do Quariterê.  


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